.2 de abril de 2009.

[...]


“-Digamos que fosse tudo diferente, que você tivesse casado com uma das tias e mamãe casado com um dos seus irmãos, como seria? Teria atrações pela cunhada minha mãe, ou não teria, por ser cunhada, está acompanhando? O que leva alguém a se casar com outro? Ela era bonita, atraente, você escolheu, sua preferida, depois de você passar anos da vida experimentando, calculando com quem seria, sonhando acordado, tendo pesadelos, cheio de dúvidas, até concluir é ela! Mas na minha idéia diferente, ela seria não sua mulher mas mulher de um tio, minha tia, e você a veria todos os dias, piscina, jantares, festas, e então, não seria sua preferida, sua escolha? Nessa família, pai, na nossa, somos todos muito próximos, sempre juntos, por exemplo, você vê todas tomando sol, e no que pensa, no corpo que está vendo ou no laço familiar? Um corpo é um corpo, um touro não pergunta a uma vaca quem ela é, e vacas no cio sobem em vacas, um cachorro sobe nas irmãs, um sapo dá centenas e são todos pretos que se espalham na água assim que nascem, perdendo o laço familiar, e quando comemos um bife não sabemos a origem, mas sabemos se e picanha ou filé e separamos o frango em coxas e peitos e, às vezes, olhamos as mulheres com um apetite guloso, as peças, uma coxa é uma coxa, um peito é grande, pequeno, redondo, caído, pontudo, arrebitado, branco, moreno, queimado, vesgo, mole, duro, liso, áspero, às vezes coberto, às vezes semi, às vezes nu, o mundo dá voltas, e o que não é seu pode ser seu um dia, e o que você não quer hoje pode querer amanhã. Amanhã, pai, você pode querer matar alguém, e isso você nunca vai fazer porque é uma encrenca danada matar alguém, mas se a idéia não sai da cabeça, você começa a pensar em algo que não te incrimine, um crime perfeito, como costumam dizer, então, o que te diz que você não vai planejar o crime perfeito?, ficar só na vontade não sufoca?, quantas vontades dão certo?, quais você controla e quais deixa escapar?, quem me diz que aquilo eu não posso fazer, pai? Tudo bem, leis, regras, nos deram algumas tarefas, exercícios, mas temos o direito de recusar. Eu não sei o que é ser feliz. Fazer o que me mandam, o que me ensinam, ou seguir a minha vontade? Eu estou infeliz e não consigo entender por quê. Parece que ajuda falar mas não alivia. Me dá uma felicidade grande estar com toda a família e me dá uma tristeza grande saber que vai acabar, não consigo ficar tranqüila sabendo que vai ter um dia em que vou sofrer. Um dia alguém vai morrer, pai. Outro vai se separar. Outro pode se acidentar, perder uma perna, ficar louco, parar de falar. Tenho pensado muito em todos e pensando em como fazer para ajudar, como ser útil e fazer com que todos fiquem bem, mas tenho medo de não conseguir. E tenho medo de que as coisas possam ficar diferentes e eu perder um de vocês, ou uma tia virar minha mãe, ou eu me casar com uma prima e meus filhos nascerem sobrinhos de segundo grau. Se morrer um da família, tenho a impressão de que tudo vai arrebentar e a gente não vai agüentar. Olha só, pai, me dá vontade até de chorar só de pensar que um dia isso pode acontecer, e o que é que eu vou fazer quando isso acontecer? Talvez teria sido melhor que eu não tivesse nascido nem soubesse o que é tristeza. Meu maior medo é a solidão. Tenho pesadelos de que todos vão embora. Imagine se uma grande explosão destruir o país, ou se um vírus matar todos, pai. Imagine se a gente pega uma estrada que não tem fim. Imagine se o dia não amanhecer e ficar noite escura para sempre. E se o sol começar a se aproximar da Terra, ou a Lua começar a cair? E se eu ficar cego? E se eu nunca me apaixonar por uma mulher e ficar sempre triste? E se eu nunca mais conseguir dormir? E se eu parar de pensar. Seria bom, às vezes, parar de pensar. Penso demais, o tempo todo, nunca descanso, não pára, por isso não durmo, porque penso, e penso no meu dia, como foi, com quem falei, o que fiz, o que me disseram, e penso se eu tivesse dito outra coisa, se eu tivesse tido outra reação e penso tudo de novo. Se acordei de cara amarrada, penso como teria sido se tivesse acordado de cara boa e o que teria acontecido. Se disse não, penso, e se tivesse dito sim? E um fulano qualquer me diz ‘a’, e fico pensando nesse ‘a’, por que disse, por que não disse ‘b’, o que ele quis dizer realmente, porque este é o meu problema, pai, sempre acho que tem uma coisa por trás de tudo do que as pessoas dizem, e não pára aí: tem uma coisa por trás do que as pessoas fazem, são. Ninguém é o que é gratuitamente, tem outras razões. Fingem, isso é que é, fingem que são o que são, mas não são. O que eles são? Na verdade são outra coisa. E por que escolheram ser isso e não a coisa que são? Aí,não sei responder. É, tem coisa que não sei responder, pai. E por isso fico sem dormir, sem parar de pensar. Posso ser tanta coisa... Posso ser igual a você. Posso ser inteligente como o vovô. Ou um piloto de aviões, um bandido, um excelente bombeiro. Agora, posso também não ser nada. Ficar tão angustiado com tantas opções, e não me resolver a tempo. Posso ser um pensador. Será que posso? Do que vive um pensador? Você conhece algum pensador, pai?

- Eu?, ele perguntou.”


[Não és tu Brasil - Marcelo Rubens Paiva]

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Postado Por: Kell às 01:06:00

1 Comments

Blogger Zeca Monteiro said...

Eu achei que teria que escrever esse trecho para postar no meu fotolog, mas daí encontrei aqui! hahaha

Muito obrigado. haha

1 de junho de 2010 às 02:00  

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